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domingo, 24 de janeiro de 2016

Mas então, como se labora Teologia?

Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 16/05/2024

 

“Ó Senhor... Seja-me permitido enxergar a tua luz, embora de tão longe e desta profundidade. Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro. Pois, sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira, nem encontrar-te se não te mostrares. Que eu possa procurar-te desejando-te, e desejar-te ao procurar-te, e encontrar-te amando-te, e amar-te ao te encontrar”

Anselmo de Cantuária - 1078 - destaque; em O que é Teologia?

Coleção Teologia ao Alcance de Todos - MK Editora

 

Seguindo nosso posicionamento explicado no capítulo anterior, embora consideremos teologia como o ato simples mas voluntário de pensar em Deus, Ele mesmo, Deus, não pode ser objeto material de nosso labor teológico, uma vez que nenhum dos nossos sentidos o pode limitar ou definir em forma ou essência. O objeto do empreendimento teológico é, antes, a revelação de Deus, onde e como ela possa ser encontrada, bem como sua relação com a humanidade, expressa e registrada em evidências de sua manifestação.

Anselmo de Cantuária[1], autor do texto acima, parecia entender isso perfeitamente. Ao pedir para enxergar a luz de Deus e não o próprio Deus, ele reconhece que apenas a manifestação divina pode ser percebida, dada a profunda e intransponível distância que nos separa do Criador. Mais importante, Anselmo compreende que a iniciativa de se revelar emana do próprio Deus: "mostra-te a mim que te procuro." O caminho para tal conhecimento também depende da orientação divina: "sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira." O labor teológico se fundamenta na revelação de Deus, que atende aos seus propósitos e jamais se limita à especulação humana.

1.  Mas então, como se labora uma teologia?

Dado que Deus, em sua magnificência, não pode ser objeto direto de estudo, a revelação e a relação de Deus com a humanidade tornam-se nosso material de investigação. Mas onde procurar essa revelação e os indícios dessa relação com a humanidade?

“Para o cumprimento de sua missão, o teólogo, como um investigador, se baseia em evidências a fim de formular suas hipóteses.”

Elisa Rodrigues; em O que é Teologia?

Coleção Teologia ao Alcance de Todos - MK Editora

Duas ressalvas são pertinentes para manter a coerência de nossa tarefa. A primeira refere-se ao exercício teológico encontrado em diversas civilizações, antigas e contemporâneas, que são importantes e colaborativas, mas serão deixadas de lado temporariamente para focarmos no labor teológico cristão. A segunda ressalva relaciona-se ao significado da palavra 'evidência' no contexto coloquial, que difere significativamente do contexto forense. No texto em destaque, 'evidência' refere-se a material para investigação, alinhando-se mais ao entendimento forense de evidência circunstancial[2]. Esse sentido permite uma abordagem investigativa e analítica necessária ao estudo teológico.

Então, quais são as evidências sobre as quais podemos exercer a tarefa de pensar em Deus, através de sua revelação e relação com a humanidade? Como identificar que um fato ou circunstância é uma revelação ou evidência dessa relação?

19 Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. 20 Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis;”

Romanos 1:19-20 - JFA


1 Os céus revelam a glória de Deus, o firmamento proclama a obra de suas mãos. 2 Um dia discursa sobre isso a outro dia, e uma noite compartilha conhecimento com outra noite. 3 Não há termos, não há palavras, nenhuma voz que deles se ouça; 4 entretanto, sua linguagem é transmitida por toda a terra, e sua mensagem, até aos confins do mundo.”

Salmos 19:1-4a - KJA

A primeira evidência que podemos destacar, com base nas indicações dos autores bíblicos, é a natureza criada. Algumas pessoas podem considerar essa evidência insuficiente para revelar todos os atributos de Deus, acreditando que ela apenas indica Seu poder criador. No entanto, Paulo discorda dessa visão, argumentando que a criação é suficiente para conhecer Deus e prestar-lhe culto, reconhecendo a divindade manifestada na natureza.

Ao examinarmos civilizações antigas, encontramos um eco dessa percepção natural da divindade. A história dessas culturas está repleta de divinizações de fenômenos naturais, elementos da natureza e animais, atribuindo-lhes poderes divinos. Esse raciocínio inicial de que a divindade estaria fora do homem, como algo completamente outro, mostra que mesmo essas civilizações eram capazes de prestar culto a ídolos divinizados. Paulo via que esse caminho poderia ser direcionado para o Deus verdadeiro, pois a revelação natural esteve disponível por muito mais tempo do que outras formas de revelação divina.

Assim como Paulo, o salmista Davi via em seu cotidiano a declaração da glória de Deus através da criação. Sem precisar de palavras ou vozes, a criação proclamava ao devotado rei Davi a majestade do Deus Criador, sendo uma mensagem suficiente para todos os povos e nações, em qualquer parte do planeta. No Salmo 19:1-4, Davi celebra como "os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos."

Em nosso artigo "A Relevância de um Deus Criador"[3], discutimos a importância fundamental do conceito de Deus como Criador em todo o processo teológico. Aceitando, portanto, a natureza criada como uma evidência primeira e suficiente da revelação de Deus e de Seus atributos, que outras evidências poderíamos considerar neste árduo, mas gratificante, empreendimento de conhecer a Deus?

Voltemos ao texto bíblico, deixando de lado por um momento a criação. No Novo Testamento, Paulo escreve em Romanos 1:19-20 que "o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas." Aqui, Paulo reitera que a criação é uma prova visível dos atributos invisíveis de Deus.

97 Quanto amo a tua Lei! Sobre ela reflito o dia inteiro! 98 Os teus mandamentos me fizeram mais sábio que meus adversários, porquanto estão sempre comigo. 99 Tornei-me mais perspicaz que todos os meus mestres, pois meditei em tuas prescrições.100 Tenho mais discernimento que os anciãos, pois obedeço aos teus preceitos. 101 Desviei meus pés de todas as trilhas do mal para guardar a tua Palavra! 102 Não me afasto de tuas ordenanças, pois tu mesmo me ensinas. 103 Quão doces são os teus decretos ao meu paladar! Mais que o mel à minha boca. 104 Graças aos teus preceitos tenho entendimento; por isso, detesto todos os caminhos da mentira!”

Salmos 119:97-104 - KJA

Outra evidência bastante contundente e amplamente utilizada é o próprio texto bíblico, que registra não apenas as manifestações e revelações de Deus, mas também o exercício contínuo da relação de Deus com a humanidade. A Bíblia nos permite adotar diversas abordagens e métodos investigativos, ampliando a capacidade de elaborar argumentos teológicos robustos. É importante ressaltar que há poucos registros escritos sobre manifestações divinas além dos textos das civilizações antigas, aos quais retornaremos mais adiante. No entanto, mesmo esses registros não diferem significativamente dos relatos bíblicos em termos de possibilidades e variedade de entendimento sobre o que Deus revela de si mesmo e como Ele se relaciona com a humanidade. Observamos uma coincidência providencial na maioria das civilizações: elas documentam um relacionamento entre a divindade e a humanidade, demonstrando que o labor teológico está no caminho certo ao tentar compreender o impacto dessa relação na existência humana, se há propósitos claros nela, e quais são esses propósitos.

Concentrando-nos na Bíblia, veremos em detalhes que ela possui um texto extremamente rico em registros de revelações e ensinamentos divinos, que podem ser extraídos de maneira concomitante ou isolada, de um único trecho ou de vários. Esses trechos são registros complementares entre si e nunca contraditórios, sustentando a quase totalidade das conclusões teológicas e servindo como orientação racional, mesmo que a fé seja um ambiente e tema recorrente.

Além dessas evidências, existem conteúdos multidisciplinares que colaboram significativamente com o labor teológico. Pesquisas históricas, descobertas arqueológicas e até especulações científicas podem apoiar a tarefa teológica de pensar em Deus. É crucial lembrar que nenhum desses esforços precisa se esgotar em si mesmo.

A teologia é, por definição, dinâmica, pois, embora trate do pensamento sobre o Imutável, lida com a compreensão humana daquilo que é revelado sobre Ele. Por essa razão, encontramos variações nos conceitos teológicos ao longo da história da humanidade. Não que Deus se altere ou varie existencialmente, mas porque a compreensão de sua revelação e relação com a humanidade influencia e é influenciada pelas diferentes áreas do conhecimento humano, bem como pelos contextos históricos, socioeconômicos e até políticos em que estão inseridos.

Dada a natureza dinâmica da teologia e sua capacidade de acompanhar o pensamento humano contemporâneo, ela não pode e nem deve se auto intitular como a detentora de uma verdade absoluta composta por princípios insondáveis e inquestionáveis. O maior benefício do labor teológico é justamente fomentar a condescendência e a tolerância em quem o pratica, reconhecendo que estamos lidando com realidades muito mais elevadas do que a compreensão humana limitada pode apreender ou definir em termos complexos. Nossa linguagem será sempre insuficiente para expressar a grandeza do que estudamos ou mesmo para explicar plenamente aquilo em que acreditamos. Por isso, a comunicação da salvação se faz por meio de testemunho e experiência, e a salvação se dá por conversão, não por convencimento.

Ao nos debruçarmos sobre a complexidade e a profundidade da teologia, somos chamados a uma humildade reverente diante do mistério divino. Nossa jornada de investigação e contemplação não visa esgotar a vastidão do Ser divino, mas nos convida a um contínuo aprofundamento no conhecimento de Deus, conforme Ele se revela. Ao reconhecermos nossas limitações e a grandiosidade do objeto de nosso estudo, cultivamos uma postura de adoração, gratidão e devoção. A teologia, assim, não é apenas um exercício intelectual, mas uma prática espiritual que nos transforma e nos aproxima cada vez mais do Criador. Que possamos sempre procurar a luz divina com fervor, e que, ao encontrá-la, sejamos transformados por seu amor infinito e misericordioso.



[1] Anselmo de Cantuária (1033-1109) foi um filósofo e teólogo cristão de grande influência, nascido em Aosta, na atual Itália. Ele é amplamente reconhecido como um dos fundadores da escolástica medieval, uma tradição que buscava harmonizar a fé cristã com a razão filosófica. Anselmo é mais conhecido por seus trabalhos na filosofia da religião e pela formulação do argumento ontológico para a existência de Deus.

Anselmo continua a ser estudado e respeitado por seu esforço em usar a razão para explorar e explicar a fé cristã, mantendo um equilíbrio entre devoção religiosa e investigação filosófica.

[2] No contexto forense, "evidência circunstancial" refere-se a informações e indícios que não provam diretamente um fato ou a culpa de uma pessoa, mas permitem inferir ou sugerir uma conclusão com base em um conjunto de circunstâncias. Esse tipo de evidência é indireta e exige que se tirem conclusões lógicas para conectar os pontos e formar um quadro completo

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