Por
Jânsen Leiros Jr.
Revisado
e ampliado em 16/05/2024
“Ó Senhor... Seja-me permitido enxergar a tua luz, embora de tão longe e desta profundidade. Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro. Pois, sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira, nem encontrar-te se não te mostrares. Que eu possa procurar-te desejando-te, e desejar-te ao procurar-te, e encontrar-te amando-te, e amar-te ao te encontrar”
Anselmo de Cantuária - 1078 - destaque; em O que é
Teologia?
Coleção
Teologia ao Alcance de Todos - MK Editora
Seguindo nosso posicionamento
explicado no capítulo anterior, embora consideremos teologia como o ato simples
mas voluntário de pensar em Deus, Ele mesmo, Deus, não pode ser objeto material
de nosso labor teológico, uma vez que nenhum dos nossos sentidos o pode limitar
ou definir em forma ou essência. O objeto do empreendimento teológico é, antes,
a revelação de Deus, onde e como ela possa ser encontrada, bem como sua relação
com a humanidade, expressa e registrada em evidências de sua manifestação.
Anselmo de Cantuária[1], autor do texto acima, parecia
entender isso perfeitamente. Ao pedir para enxergar a luz de Deus e não o
próprio Deus, ele reconhece que apenas a manifestação divina pode ser
percebida, dada a profunda e intransponível distância que nos separa do
Criador. Mais importante, Anselmo compreende que a iniciativa de se revelar
emana do próprio Deus: "mostra-te a mim que te procuro." O caminho
para tal conhecimento também depende da orientação divina: "sequer posso
procurar-te se não me ensinares a maneira." O labor teológico se
fundamenta na revelação de Deus, que atende aos seus propósitos e jamais se
limita à especulação humana.
1. Mas então, como se labora uma
teologia?
Dado que Deus, em sua magnificência,
não pode ser objeto direto de estudo, a revelação e a relação de Deus com a
humanidade tornam-se nosso material de investigação. Mas onde procurar essa
revelação e os indícios dessa relação com a humanidade?
“Para o cumprimento de sua missão, o teólogo, como um investigador, se baseia em evidências a fim de formular suas hipóteses.”
Elisa
Rodrigues; em
O que é Teologia?
Coleção Teologia ao Alcance de Todos
- MK Editora
Duas ressalvas são pertinentes para manter a coerência de nossa tarefa. A primeira refere-se ao exercício teológico encontrado em diversas civilizações, antigas e contemporâneas, que são importantes e colaborativas, mas serão deixadas de lado temporariamente para focarmos no labor teológico cristão. A segunda ressalva relaciona-se ao significado da palavra 'evidência' no contexto coloquial, que difere significativamente do contexto forense. No texto em destaque, 'evidência' refere-se a material para investigação, alinhando-se mais ao entendimento forense de evidência circunstancial[2]. Esse sentido permite uma abordagem investigativa e analítica necessária ao estudo teológico.
Então, quais são as evidências sobre
as quais podemos exercer a tarefa de pensar em Deus, através de sua revelação e
relação com a humanidade? Como identificar que um fato ou circunstância é uma
revelação ou evidência dessa relação?
“19 Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. 20 Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis;”
Romanos 1:19-20 - JFA
“1 Os céus revelam a glória de Deus, o firmamento proclama a obra de suas mãos. 2 Um dia discursa sobre isso a outro dia, e uma noite compartilha conhecimento com outra noite. 3 Não há termos, não há palavras, nenhuma voz que deles se ouça; 4 entretanto, sua linguagem é transmitida por toda a terra, e sua mensagem, até aos confins do mundo.”
Salmos 19:1-4a - KJA
A primeira evidência que podemos
destacar, com base nas indicações dos autores bíblicos, é a natureza criada.
Algumas pessoas podem considerar essa evidência insuficiente para revelar todos
os atributos de Deus, acreditando que ela apenas indica Seu poder criador. No
entanto, Paulo discorda dessa visão, argumentando que a criação é suficiente
para conhecer Deus e prestar-lhe culto, reconhecendo a divindade manifestada na
natureza.
Ao examinarmos civilizações antigas,
encontramos um eco dessa percepção natural da divindade. A história dessas
culturas está repleta de divinizações de fenômenos naturais, elementos da
natureza e animais, atribuindo-lhes poderes divinos. Esse raciocínio inicial de
que a divindade estaria fora do homem, como algo completamente outro, mostra
que mesmo essas civilizações eram capazes de prestar culto a ídolos
divinizados. Paulo via que esse caminho poderia ser direcionado para o Deus
verdadeiro, pois a revelação natural esteve disponível por muito mais tempo do
que outras formas de revelação divina.
Assim como Paulo, o salmista Davi via
em seu cotidiano a declaração da glória de Deus através da criação. Sem
precisar de palavras ou vozes, a criação proclamava ao devotado rei Davi a
majestade do Deus Criador, sendo uma mensagem suficiente para todos os povos e
nações, em qualquer parte do planeta. No Salmo 19:1-4, Davi celebra como
"os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas
mãos."
Em nosso artigo "A Relevância de
um Deus Criador"[3], discutimos a importância
fundamental do conceito de Deus como Criador em todo o processo teológico.
Aceitando, portanto, a natureza criada como uma evidência primeira e suficiente
da revelação de Deus e de Seus atributos, que outras evidências poderíamos
considerar neste árduo, mas gratificante, empreendimento de conhecer a Deus?
Voltemos ao texto bíblico, deixando
de lado por um momento a criação. No Novo Testamento, Paulo escreve em Romanos
1:19-20 que "o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque
Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e
divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos
mediante as coisas criadas." Aqui, Paulo reitera que a criação é uma prova
visível dos atributos invisíveis de Deus.
“97 Quanto amo a tua Lei! Sobre ela reflito o dia inteiro! 98 Os teus mandamentos me fizeram mais sábio que meus adversários, porquanto estão sempre comigo. 99 Tornei-me mais perspicaz que todos os meus mestres, pois meditei em tuas prescrições.100 Tenho mais discernimento que os anciãos, pois obedeço aos teus preceitos. 101 Desviei meus pés de todas as trilhas do mal para guardar a tua Palavra! 102 Não me afasto de tuas ordenanças, pois tu mesmo me ensinas. 103 Quão doces são os teus decretos ao meu paladar! Mais que o mel à minha boca. 104 Graças aos teus preceitos tenho entendimento; por isso, detesto todos os caminhos da mentira!”
Salmos 119:97-104 - KJA
Outra evidência bastante contundente
e amplamente utilizada é o próprio texto bíblico, que registra não apenas as
manifestações e revelações de Deus, mas também o exercício contínuo da relação
de Deus com a humanidade. A Bíblia nos permite adotar diversas abordagens e
métodos investigativos, ampliando a capacidade de elaborar argumentos
teológicos robustos. É importante ressaltar que há poucos registros escritos
sobre manifestações divinas além dos textos das civilizações antigas, aos quais
retornaremos mais adiante. No entanto, mesmo esses registros não diferem
significativamente dos relatos bíblicos em termos de possibilidades e variedade
de entendimento sobre o que Deus revela de si mesmo e como Ele se relaciona com
a humanidade. Observamos uma coincidência providencial na maioria das
civilizações: elas documentam um relacionamento entre a divindade e a
humanidade, demonstrando que o labor teológico está no caminho certo ao tentar
compreender o impacto dessa relação na existência humana, se há propósitos
claros nela, e quais são esses propósitos.
Concentrando-nos na Bíblia, veremos
em detalhes que ela possui um texto extremamente rico em registros de
revelações e ensinamentos divinos, que podem ser extraídos de maneira
concomitante ou isolada, de um único trecho ou de vários. Esses trechos são registros
complementares entre si e nunca contraditórios, sustentando a quase totalidade
das conclusões teológicas e servindo como orientação racional, mesmo que a fé
seja um ambiente e tema recorrente.
Além dessas evidências, existem
conteúdos multidisciplinares que colaboram significativamente com o labor
teológico. Pesquisas históricas, descobertas arqueológicas e até especulações
científicas podem apoiar a tarefa teológica de pensar em Deus. É crucial
lembrar que nenhum desses esforços precisa se esgotar em si mesmo.
A teologia é, por definição,
dinâmica, pois, embora trate do pensamento sobre o Imutável, lida com a
compreensão humana daquilo que é revelado sobre Ele. Por essa razão,
encontramos variações nos conceitos teológicos ao longo da história da
humanidade. Não que Deus se altere ou varie existencialmente, mas porque a
compreensão de sua revelação e relação com a humanidade influencia e é
influenciada pelas diferentes áreas do conhecimento humano, bem como pelos
contextos históricos, socioeconômicos e até políticos em que estão inseridos.
Dada a natureza dinâmica da teologia
e sua capacidade de acompanhar o pensamento humano contemporâneo, ela não pode
e nem deve se auto intitular como a detentora de uma verdade absoluta composta
por princípios insondáveis e inquestionáveis. O maior benefício do labor
teológico é justamente fomentar a condescendência e a tolerância em quem o
pratica, reconhecendo que estamos lidando com realidades muito mais elevadas do
que a compreensão humana limitada pode apreender ou definir em termos
complexos. Nossa linguagem será sempre insuficiente para expressar a grandeza
do que estudamos ou mesmo para explicar plenamente aquilo em que acreditamos.
Por isso, a comunicação da salvação se faz por meio de testemunho e
experiência, e a salvação se dá por conversão, não por convencimento.
Ao nos debruçarmos sobre a
complexidade e a profundidade da teologia, somos chamados a uma humildade
reverente diante do mistério divino. Nossa jornada de investigação e
contemplação não visa esgotar a vastidão do Ser divino, mas nos convida a um
contínuo aprofundamento no conhecimento de Deus, conforme Ele se revela. Ao
reconhecermos nossas limitações e a grandiosidade do objeto de nosso estudo,
cultivamos uma postura de adoração, gratidão e devoção. A teologia, assim, não
é apenas um exercício intelectual, mas uma prática espiritual que nos
transforma e nos aproxima cada vez mais do Criador. Que possamos sempre
procurar a luz divina com fervor, e
que, ao encontrá-la, sejamos transformados por seu amor infinito e
misericordioso.
[1]
Anselmo de Cantuária (1033-1109) foi um filósofo e teólogo cristão de grande
influência, nascido em Aosta, na atual Itália. Ele é amplamente reconhecido
como um dos fundadores da escolástica medieval, uma tradição que buscava
harmonizar a fé cristã com a razão filosófica. Anselmo é mais conhecido por
seus trabalhos na filosofia da religião e pela formulação do argumento
ontológico para a existência de Deus.
Anselmo continua a ser
estudado e respeitado por seu esforço em usar a razão para explorar e explicar
a fé cristã, mantendo um equilíbrio entre devoção religiosa e investigação
filosófica.
[2] No
contexto forense, "evidência circunstancial" refere-se a informações
e indícios que não provam diretamente um fato ou a culpa de uma pessoa, mas permitem
inferir ou sugerir uma conclusão com base em um conjunto de circunstâncias.
Esse tipo de evidência é indireta e exige que se tirem conclusões lógicas para
conectar os pontos e formar um quadro completo
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