Por Jânsen Leiros
A narrativa no livro de Atos dos Apóstolos marca uma transição notável e
estratégica a partir da conversão de Saulo de Tarso, que se torna o apóstolo
Paulo. Essa mudança, que desloca o protagonismo da igreja de Jerusalém para as
viagens missionárias do agora convertido Paulo, não se trata apenas de uma
escolha literária do autor, Lucas. Muito mais do que isso, reflete um movimento
divino intencional. A centralização da narrativa em Paulo e sua missão não
apenas impulsiona a expansão geográfica do evangelho aos gentios, mas também
serve como resposta à ameaça interna que rondava a igreja primitiva: o
movimento judaizante. Este movimento buscava impor práticas legais judaicas,
como a circuncisão, à fé cristã, o que poderia restringir o evangelho a uma
seita judaica, sufocando sua universalidade.
Paulo emerge como o apóstolo da graça, um defensor fervoroso de que a
salvação não vem pela observância da Lei mosaica, mas pela fé em Jesus Cristo.
Essa transição narrativa de Pedro e dos demais apóstolos para a figura de Paulo
não é um simples deslocamento de foco geográfico ou ministerial.
Teologicamente, reflete uma ruptura fundamental com o judaísmo legalista e uma
reafirmação da natureza inclusiva e universal do evangelho. A centralidade de
Paulo em Atos tem como pano de fundo uma batalha teológica pela identidade do
cristianismo: seria ele uma continuação do judaísmo, vinculado à Lei e suas
práticas, ou seria uma nova aliança, marcada pela fé e graça, aberta a todos os
povos?
O movimento judaizante, que ganha relevância em várias partes do Novo
Testamento, é uma força significativa dentro da igreja primitiva. Sua
influência é particularmente notada em Gálatas, onde Paulo confronta
diretamente aqueles que tentavam impor a circuncisão e outras práticas da Lei
aos gentios convertidos. O conflito é explícito: se a observância da Lei de
Moisés fosse requerida para a salvação, a fé em Cristo seria diminuída, e o
cristianismo se tornaria uma subcategoria do judaísmo. A centralidade de Paulo
na segunda metade de Atos, aliada às suas epístolas, revela a luta teológica
para garantir que o cristianismo emergisse como uma fé fundamentada na graça
divina, e não nas obras da Lei. A sua teologia, exposta em cartas como Romanos
e Gálatas, foi decisiva para libertar a mensagem cristã das amarras legalistas
que ameaçavam a jovem igreja.
1. O Conflito com o Judaísmo e o Movimento Judaizante
Desde o início da missão cristã, havia tensões entre os que viam a fé em
Cristo como um movimento inclusivo, destinado a todos os povos, e aqueles que acreditavam
que o cristianismo deveria seguir fielmente as tradições judaicas. A
circuncisão, símbolo central da aliança de Deus com Israel, tornou-se o ponto
de discórdia entre esses dois grupos. Em Atos 15, encontramos o Concílio de
Jerusalém, um momento decisivo em que a liderança da igreja primitiva,
incluindo Pedro, Tiago e Paulo, debatem abertamente se os gentios convertidos
deveriam ou não ser obrigados a observar a Lei de Moisés.
O resultado do concílio foi um marco de ruptura: a decisão de que os gentios
não precisariam seguir a Lei para serem salvos, exceto por algumas poucas
instruções com o objetivo de promover a convivência pacífica entre judeus e
gentios (Atos 15:28-29). Esta decisão não foi apenas uma questão de
conveniência pastoral; ela tinha implicações teológicas profundas. A igreja
estava, naquele momento, traçando uma linha clara entre o que era essencial
para a fé cristã — a graça e a fé em Jesus Cristo — e o que pertencia ao antigo
pacto, agora superado. Esse evento esvazia, de forma definitiva, a tentativa de
"judaizar" o cristianismo, e a missão de Paulo passa a ser vista como
a encarnação dessa nova fase do evangelho.
2. A Teologia da Graça e a Inclusão Gentílica
A teologia de Paulo, como articulada principalmente em Romanos e
Gálatas, enfatiza que a justificação vem pela fé em Cristo, e não pela
observância da Lei. Em Romanos 3:28, ele afirma: "Concluímos, pois, que o
homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei". Essa
doutrina é o cerne da missão de Paulo aos gentios e reflete uma compreensão
revolucionária da relação entre a antiga e a nova aliança. A Lei, para Paulo,
serviu como um tutor (paidagogos), um guia temporário até a chegada de Cristo
(Gálatas 3:24-25). Com a vinda de Cristo, a função da Lei foi cumprida e
superada pela fé.
Essa teologia da graça não era apenas uma ideia teórica; ela tinha
implicações práticas significativas para a missão gentílica. Ao retirar a
exigência da observância da Lei mosaica, o evangelho tornava-se acessível a
todas as culturas e povos, sem a necessidade de uma conversão prévia ao
judaísmo. Isso marca uma ruptura com o exclusivismo judaico e reflete a
universalidade da mensagem cristã. O livro de Atos, ao centrar-se em Paulo e
suas viagens, reforça essa teologia, mostrando que o evangelho transcende as
barreiras étnicas e culturais. Paulo, em suas cartas, argumenta repetidamente
que a salvação é uma dádiva divina, não uma recompensa por cumprir a Lei, e
esse princípio está presente em toda sua missão.
3. Romanos 11: A Inclusão dos Judeus e Gentios no Plano de Deus
Um aspecto frequentemente negligenciado ao discutir a teologia de Paulo
e a missão gentílica é sua visão sobre a inclusão dos judeus no plano de Deus,
apresentada de forma detalhada em Romanos 11. Paulo não apenas combate o
legalismo judaizante, mas também deixa claro que os judeus não estão fora do
alcance da graça de Deus. Ele utiliza a metáfora da oliveira, onde os gentios
são enxertados na raiz de Israel, mas adverte que os judeus podem ser novamente
enxertados pela fé.
Essa passagem é crucial para entender que, ao mesmo tempo em que Paulo
combate a imposição da Lei, ele não descarta a importância do povo judeu no
plano de salvação. Para ele, o evangelho é uma mensagem de inclusão, tanto para
judeus quanto para gentios, e a única condição é a fé em Jesus Cristo. Em
Romanos 11:26, ele profetiza: "E assim todo o Israel será salvo".
Isso reafirma que, mesmo com sua missão voltada principalmente aos gentios,
Paulo não vê os judeus como excluídos da promessa divina. O evangelho, para
ele, é inclusivo em todos os sentidos — seja para aqueles que viviam sob a Lei,
seja para aqueles que nunca a conheceram.
4. O Concílio de Jerusalém como Ponto de Ruptura
O Concílio de Jerusalém, descrito em Atos 15, é um evento decisivo para
entender a natureza do cristianismo nascente. Ao determinar que os gentios
convertidos não precisavam seguir a Lei de Moisés, os líderes da igreja
estabeleceram uma nova identidade para a fé cristã, que se distanciava das
obrigações legais judaicas. Paulo e Barnabé, que haviam levado essa questão ao
concílio, saem vitoriosos, pois a igreja decide pela liberdade dos gentios em
relação à Lei. Contudo, o concílio não apenas favorece a expansão missionária;
ele também reafirma que a salvação é um ato de graça, acessível a todos através
de Jesus Cristo.
Essa ruptura com o judaísmo legalista é um marco teológico fundamental,
e Paulo emerge como a figura central nessa batalha pela identidade da igreja.
Atos, ao centrar-se em Paulo após o concílio, não só documenta a expansão do
evangelho, mas também reforça a teologia da graça como o coração da fé cristã.
5. A Missão de Paulo como Libertação Teológica
A missão de Paulo não foi apenas geográfica; ela também foi
profundamente teológica. Ao confrontar o movimento judaizante, Paulo libertou o
cristianismo de se tornar uma seita judaica, resgatando a universalidade do
evangelho. Sua insistência na salvação pela fé e não pelas obras da Lei é uma
das razões pelas quais o cristianismo se espalhou além dos limites do judaísmo.
Gálatas 5:1 é uma declaração clara desse compromisso: "Foi para a
liberdade que Cristo nos libertou. Permaneçam, pois, firmes e não se submetam
novamente a um jugo de escravidão".
A teologia da graça é central não apenas para o cristianismo paulino,
mas para a igreja universal. Ao destacar a figura de Paulo, Atos não apenas
narra o crescimento da igreja, mas também reflete a importância de sua mensagem
teológica: a liberdade em Cristo, desvinculada da necessidade de observância
legal. A conversão de Saulo e sua subsequente missão são, portanto, não apenas
um momento de mudança narrativa, mas também de libertação teológica que moldou
o futuro da igreja cristã.