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sábado, 16 de novembro de 2024

Profeta, um chamado a borbulhar

 Por Jânsen Leiros Jr.

Amós 3:8

"Rugiu o leão, quem não temerá? Falou o Senhor Deus, quem não profetizará?"
Este versículo ilustra a compulsão irresistível do profeta em transmitir a mensagem divina após ouvir a voz de Deus. 

 

 Isaías 6:8

"Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: Eis-me aqui, envia-me a mim."
Mostra como o chamado divino desperta no profeta uma resposta incontrolável de disponibilidade, mesmo diante de desafios.

 

 Ezequiel 3:10-11

"Disse-me ainda: Filho do homem, todas as minhas palavras que te hei de falar, recebe-as no teu coração, e ouve-as com os teus ouvidos. Vai, dirige-te aos do cativeiro, aos filhos do teu povo, e lhes falarás dizendo: Assim diz o Senhor Deus, quer ouçam, quer deixem de ouvir."

Este trecho enfatiza a responsabilidade e a urgência do profeta em proclamar a mensagem, independentemente da receptividade do público.

 

 Atos 4:20

"Pois nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos."

Assim como Jeremias, os apóstolos não conseguiam conter a mensagem que ardia dentro deles, um testemunho claro da força do chamado profético.

 

 2 Pedro 1:21

"Porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens santos falaram da parte de Deus movidos pelo Espírito Santo."

Este versículo confirma a ideia de que o profeta é movido pelo Espírito, não por sua própria vontade.

 A palavra "profeta" carrega consigo um peso teológico profundo que atravessa a história de diversas civilizações antigas, sendo de grande importância tanto para o povo de Israel quanto para os povos que estavam em contato com ele. O estudo etimológico e o papel da figura do profeta em diferentes culturas nos revelam muito sobre o significado de seu chamado, suas funções, e as maneiras pelas quais ele estava "tocando" a mensagem divina.

O Significado Etimológico da Palavra "Profeta"

A palavra "profeta", tal como a entendemos no português, vem do grego προφήτης (prophétēs), que significa "aquele que fala em nome de outro", "aquele que fala em nome de Deus". A raiz dessa palavra vem de προ (pro), que significa "antes" ou "para frente", e φημί (phēmi), que significa "falar". Portanto, etimologicamente, um profeta é alguém que fala antes ou para o futuro, alguém que traz uma mensagem que, muitas vezes, transcende o tempo presente, apontando para a vontade divina; um anúncio.

No hebraico, a palavra para "profeta" é נָבִיא (nāvī’), que está relacionada à ideia de ser chamado ou enviado por Deus para falar em Seu nome. A raiz נָבַא (nābā), que significa "falar", tem a conotação de ser movido ou impelido por uma força superior. Isso explica a sensação de urgência e involuntariedade que muitos profetas sentiram ao anunciar a palavra de Deus — como se estivessem sendo "forçados" a falar, apesar de suas próprias hesitações ou até resistências. Essa ideia de que o profeta não fala por vontade própria, mas por uma impulsão divina é um conceito que aparece com grande clareza nas Escrituras, especialmente em figuras como Jeremias, que não pôde deixar de falar, pois a palavra de Deus se tornava como fogo em seus ossos.

Outras línguas contemporâneas de Israel, como o aramaico e o fenício, também apresentavam termos para o profeta, sendo que o aramaico utilizava a palavra נְבִיאָא (nebīyā), que, similar ao hebraico, trazia a ideia de alguém que era designado para falar uma mensagem divina, transmitida por um poder superior.

O Profeta em Israel e nos Povos Pagãos

O papel do profeta em Israel tinha uma função muito específica, como porta-voz de Deus para o Seu povo. Os profetas não apenas anunciavam a vontade divina, mas também traziam exortações, repreensões e aconselhamentos, servindo como mediadores entre o povo e Deus. O profeta israelita era alguém que frequentemente desafiava os valores do poder político e social, confrontando as autoridades com a verdade de Deus. Ele não estava lá para agradar as pessoas, mas para ser fiel ao chamado de Deus, que muitas vezes envolvia trazer notícias difíceis de ouvir, como o anúncio de juízos e castigos sobre o povo de Israel, como por exemplo Jeremias e Ezequiel.

Diferentemente, em muitas culturas pagãs do Antigo Testamento, os profetas eram figuras de caráter divinatório, focados em prever o futuro ou revelar os caprichos dos deuses através de rituais, oráculos e práticas místicas. Nas culturas fenícia, egípcia e babilônica, os profetas eram consultados para revelar o futuro ou interpretar os sinais dos deuses, mas essas revelações geralmente estavam ligadas ao interesse de prever desastres ou oportunidades para seus povos. Não havia, nas práticas pagãs, a mesma profundidade moral ou chamamento para a justiça social que marcava a mensagem dos profetas israelitas, que frequentemente desafiavam o poder, a corrupção e a infidelidade do povo de Israel para com Deus.

Em contraste, os profetas de Israel eram mais do que simples adivinhos ou mediadores do futuro; eram aqueles que traziam uma mensagem de justiça, arrependimento e esperança, apontando para a fidelidade ao pacto com Deus. O profeta de Israel não estava apenas prevendo eventos futuros, mas estava anunciando a vontade de Deus em resposta ao comportamento presente do povo.

O Profeta Borbulhante e o Gofo da Palavra Divina

Chegamos, então, à reflexão que propomos sobre o profeta como alguém borbulhante, cheio de uma mensagem de Deus que não pode ser contida. A palavra do Senhor que vive dentro do profeta, muitas vezes, não é algo que ele pode controlar ou escolher quando transmitir. A pressão que o profeta sente é comparada, como vimos em Jeremias, ao fogo nos ossos. Essa força incontrolável é como um gofo que precisa ser expelido, não porque o profeta o deseja, mas porque não há outra maneira de satisfazer essa urgência interna.

Essa metáfora do gofo, embora inusitada, faz referência a algo que se acumula e se torna inevitável, algo que precisa ser expelido para aliviar o "desconforto" interno do profeta. A palavra de Deus, dentro dele, vai se acumulando até que, inevitavelmente, o profeta é impelido a falar, a anunciar. A relação com o gofo aqui é clara: é algo que se junta, se acumula, e chega ao ponto em que o corpo do profeta não pode mais manter. Ele precisa exalar, expelir essa palavra, por mais difícil que seja.

A ideia do profeta como alguém borbulhante é também uma forma de entender essa urgência interna que o move. O profeta não é alguém que fala a seu tempo ou de sua própria vontade, mas sim alguém que é tomado pela palavra de Deus, uma palavra que não só é mensagem, mas força que se faz sentir dentro dele. Essa pressão interior gera um movimento que borbulha e transborda, não de maneira controlada ou programada, mas como algo que explode de dentro do profeta, à medida que a palavra é liberada para fora.

Isso nos traz uma revelação última e didática sobre o toque de Deus sobre o profeta: Deus não apenas lhe dá a palavra de maneira intelectual ou emocional, mas impõe uma urgência divina sobre o profeta. A palavra é quase uma força que o molda, que se infiltra em sua carne e alma até que, não podendo mais resistir, o profeta se torna o instrumento vivo da mensagem. O profeta não é apenas alguém que diz algo; ele vive a palavra que Deus colocou nele, com todo o fervor e intensidade.

Por isso, o chamado profético é algo intensamente humano e divino ao mesmo tempo. O profeta, imerso na palavra de Deus, se vê impelido por ela, de tal maneira que a palavra se torna uma parte de sua própria essência, e seu ato de profetizar é a exteriorização de uma verdade que não pode mais ser contida.

E assim, o profeta é como um gofo que precisa ser expelido, como um fogo que não pode ser contido nos ossos: ele não escolhe a hora de falar, mas responde ao toque divino que o molda, que o pressiona, e o leva a ser a voz de Deus, não apenas para o povo de Israel, mas para todos aqueles que precisam ouvir a vontade divina, por mais desafiadora que ela seja.

A figura do profeta, portanto, se revela como alguém que não pode calar a palavra de Deus, que borbulha e transborda em sua missão, porque, ao ser tocado por Deus, a palavra se torna mais do que uma mensagem: torna-se uma necessidade vital.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Mídia, Religião e Confusão - Uma realidade da Era Digital

 

Por Jânsen Leiros

"O meio é a mensagem." - Marshall McLuhan – Understanding Media: The Extensions of Man (1964); McLuhan enfatiza que os meios de comunicação, como a mídia, não são apenas canais neutros de transmissão de informação, mas moldam a própria natureza das mensagens que carregam. Ele reconhece o impacto profundo da mídia na formação das ideias e como ela altera nossa percepção da realidade, o que se alinha com a ideia de que a mídia influencia de maneira substancial a compreensão teológica e religiosa.

"A ascensão da mídia digital e das comunicações instantâneas permite que ideias religiosas, tanto ortodoxas quanto heréticas, se espalhem com uma velocidade sem precedentes." - Alister McGrath – The Twilight of Atheism (2004); McGrath analisa a interação entre mídia e religião, destacando como a internet e outras formas de mídia digital moldam a maneira como as pessoas acessam e interpretam conteúdos religiosos. Essa citação corrobora a ideia de que a proliferação de informações, muitas vezes superficiais, pode distorcer doutrinas e criar uma compreensão fragmentada da fé.

"A comunicação pública, especialmente na era digital, muitas vezes perde a capacidade de promover um diálogo genuíno e reflexivo, sendo frequentemente substituída por informações simplificadas e sensacionalistas." - Jürgen Habermas – The Theory of Communicative Action (1981); Habermas argumenta sobre o papel crucial da comunicação para a formação da opinião pública, mas também aponta os riscos da comunicação superficial que prevalece nas mídias contemporâneas, um ponto que está em consonância com a crítica à superficialidade da informação religiosa na mídia.

"O desafio contemporâneo para o cristianismo é como transmitir a verdade eterna em um mundo de informação instantânea e transformada." - John Stott – The Contemporary Christian (1992); Stott destaca as dificuldades enfrentadas pelas tradições religiosas em manter a profundidade e a autenticidade diante da aceleração da troca de informações e da superficialidade das mensagens midiáticas. Ele sugere que a fé precisa resistir à tentação de ser reduzida a um produto de consumo rápido.

"A internet, ao democratizar o acesso à informação, ao mesmo tempo facilita a propagação de ideias errôneas e a criação de bolhas ideológicas." - Yuval Noah Harari – 21 Lessons for the 21st Century (2018); Harari argumenta sobre os efeitos da internet na formação de bolhas ideológicas e a disseminação de desinformação, um fenômeno que também se aplica ao campo religioso, conforme discutido no texto abaixo, onde a mídia digital pode facilitar a proliferação de ideias errôneas ou incompletas sobre a fé.

Há algum tempo, venho acompanhando com apreensão a disseminação, pela mídia, de conteúdos religiosos – e, em especial, de materiais que se apresentam como cristãos e teológicos. Não é que eu questione a legitimidade do uso da mídia para divulgar temas desse campo; pelo contrário, reconheço seu potencial em difundir valores espirituais e conhecimentos sobre a fé. No entanto, minha preocupação recai sobre o modo como esses conteúdos têm sido veiculados, muitas vezes promovendo afirmações questionáveis e compreensões passíveis de debate

A mídia, com seu poder de moldar a opinião pública e disseminar informações em tempo real, exerce uma influência cada vez mais significativa na compreensão teológica contemporânea. A facilidade de acesso a conteúdos religiosos através de diversas plataformas digitais democratizou a busca por conhecimento espiritual, oferecendo aos indivíduos a oportunidade de explorar diferentes perspectivas e interpretações das escrituras sagradas.

No entanto, a proliferação de informações, muitas vezes fragmentadas e superficiais, também apresenta desafios. A busca por audiência e o impulso de simplificar conceitos complexos acabam distorcendo doutrinas e disseminando ideias equivocadas. A mídia, ao transformar a fé em um produto de consumo, incorre no risco de banalizar o sagrado e reduzir a espiritualidade a uma mera experiência emocional.

A influência da mídia na religião não é um fenômeno recente. Ao longo da história, as diferentes mídias disponíveis em cada época – da imprensa escrita ao rádio e à televisão – moldaram e, muitas vezes, instrumentalizaram a compreensão e a prática religiosa para servir a objetivos específicos. A Reforma Protestante, por exemplo, foi impulsionada pela invenção da imprensa, que permitiu a disseminação rápida das ideias de Lutero.

Na era digital, a influência da mídia se intensifica. As redes sociais, os blogs e os podcasts oferecem plataformas para a produção e disseminação de conteúdos religiosos por parte de indivíduos e grupos. Essa democratização da informação, embora superficial, permite um diálogo mais amplo e diversificado sobre questões de fé. Por outro lado, ela também facilita a propagação de informações falsas e impulsiona a formação de bolhas ideológicas que reforçam visões estreitas, prejudicando o diálogo genuíno entre diferentes perspectivas religiosas.

Para além dos aspectos negativos, a mídia também pode ser uma ferramenta poderosa para a promoção do diálogo inter-religioso e da compreensão mútua. Programas de TV, documentários e filmes podem apresentar as diferentes tradições religiosas de forma respeitosa e informativa, contribuindo para a construção de uma sociedade mais plural e tolerante.

É fundamental que os indivíduos desenvolvam um senso crítico aguçado para discernir as fontes confiáveis e construir uma compreensão teológica sólida e fundamentada. A leitura aprofundada de textos teológicos clássicos, a participação em comunidades religiosas e o diálogo com especialistas são elementos essenciais para uma compreensão teológica sólida, especialmente em um cenário onde a mídia, em grande parte, prioriza conteúdos emocionais e superficiais em detrimento da profundidade e da autenticidade espirituais. Além disso, a mídia pode ser utilizada como uma ferramenta para o diálogo inter-religioso e o aprofundamento da compreensão das diferentes tradições religiosas.

Este é apenas o início de uma jornada mais profunda sobre o impacto da mídia na nossa compreensão da fé e da teologia. Ao longo das próximas semanas, exploraremos com mais detalhes como a mídia tem transformado a prática religiosa, as distorções que ocorrem ao simplificar doutrinas complexas e a necessidade de uma reflexão crítica sobre as informações que consumimos. Com isso, buscaremos não apenas compreender melhor esses fenômenos, mas também sugerir caminhos para uma prática cristã mais sólida e fundamentada, que resista às pressões da superficialidade e da comercialização do sagrado.


domingo, 20 de outubro de 2024

Pautas pertinentes e essenciais

 

Por Jânsen Leiros

As viagens missionárias de Paulo desempenham um papel central na expansão do cristianismo e no desenvolvimento do pensamento teológico na igreja primitiva. Cada uma das três principais jornadas revela aspectos diferentes e progressivos da atuação do apóstolo, tanto em termos práticos quanto em profundidade teológica. Na primeira, vemos a urgência da proclamação do evangelho; na segunda, o fortalecimento das igrejas fundadas; e, na terceira, um amadurecimento ainda maior no discipulado e na estruturação das comunidades cristãs.

O que é notável, ao observar essas viagens em sequência, é que Paulo parece perceber que as urgências do querigma (a proclamação do evangelho) variam de acordo com as necessidades e desafios das congregações e sociedades onde ele atuava. À medida que avança, sua teologia também se aprofunda, especialmente em sua compreensão de como o evangelho transcende barreiras culturais, religiosas e espirituais. Essa visão crescente e espiral de aprofundamento teológico é fundamental para entender o impacto transformador do ministério de Paulo e sua relevância para a igreja até hoje.

A Consolidação do Discipulado

Na terceira viagem missionária, Paulo demonstrou uma estratégia pastoral clara: além de evangelizar, ele dedicou um tempo considerável para consolidar os novos convertidos e formar líderes espirituais sólidos. Éfeso foi o epicentro desse esforço, onde ele passou cerca de três anos, o período mais longo em qualquer cidade durante suas viagens. Ao contrário das viagens anteriores, onde o foco era primeiramente plantar igrejas, aqui vemos um apóstolo dedicado à maturação espiritual da comunidade. Isso reflete uma compreensão teológica profunda de que o crescimento da igreja não se baseava apenas em número de conversões, mas na profundidade do discipulado. Paulo sabia que igrejas saudáveis precisavam de líderes capacitados, capazes de ensinar, exortar e defender a fé contra falsos ensinamentos.

O discipulado que Paulo promoveu em Éfeso não foi apenas teórico, mas prático. Ele ensinou diariamente na escola de Tirano (Atos 19:9), o que revela a importância que dava ao ensino sistemático das Escrituras. Sua abordagem pastoral ia além da instrução; ele também vivia o que ensinava, sendo um modelo vivo para os novos crentes (1 Coríntios 11:1). Ele não estava apenas interessado em transferir conhecimento, mas em transformar vidas por meio do exemplo pessoal e da aplicação prática da Palavra de Deus. Assim, a missão de Paulo em Éfeso é um modelo do que deveria ser o ministério pastoral: um investimento intencional em discípulos que, por sua vez, se tornam multiplicadores do evangelho.

Teologicamente, o discipulado profundo de Paulo ecoa os ensinamentos de Jesus, que não apenas pregava para as multidões, mas formava um pequeno grupo de discípulos de maneira intensiva. A instrução doutrinária sólida era vital, mas a aplicação prática de uma vida cristã autêntica era igualmente crucial. Paulo compreendia que o evangelho só seria plenamente eficaz se o discipulado fosse encarado com seriedade. Conforme o comentário de John Stott em The Message of Acts, Paulo sabia que "a igreja de Cristo nunca avançaria com força, a menos que seus membros fossem profundamente enraizados no conhecimento de Deus e de Sua verdade".

Além disso, essa estratégia de discipulado encontra eco em Dietrich Bonhoeffer, que em sua obra Discipulado ressalta a necessidade do seguimento de Cristo implicar um chamado ao sacrifício e à responsabilidade comunitária. Para Bonhoeffer, o discipulado é o caminho pelo qual o cristão se aprofunda na fé e no compromisso com a obra de Deus. Assim, podemos ver que Paulo, em sua terceira viagem, não estava meramente "visitando igrejas", mas investindo profundamente no crescimento espiritual daqueles que levariam adiante a chama do evangelho.

A Ampliação do Evangelho aos Gentios

A terceira viagem missionária de Paulo continuou a missão que ele já havia abraçado desde sua conversão: a pregação do evangelho aos gentios. Embora seu ministério tivesse sempre uma base sólida entre os judeus, a sua visão se estendeu claramente aos povos não-judeus. Teologicamente, isso é de suma importância, pois reafirma a universalidade da mensagem de Cristo e a inclusão dos gentios na promessa de salvação. A igreja primitiva, em seus primórdios, ainda lutava com a questão de até que ponto os gentios poderiam participar das bênçãos do Reino de Deus, sem a necessidade de se submeterem às práticas judaicas. Paulo, com sua clareza teológica, foi fundamental para que essa questão fosse resolvida em favor de uma inclusão total e incondicional dos gentios.

O episódio em Éfeso, onde Paulo encontrou discípulos que não conheciam o Espírito Santo, é emblemático da maneira como ele ampliava e aprofundava o conhecimento teológico (Atos 19:1-7). Ao encontrar seguidores de João Batista, ele prontamente os instrui sobre a plenitude da revelação de Cristo e sobre o papel do Espírito Santo. Para Paulo, a missão entre os gentios não se limitava à simples proclamação, mas envolvia trazer uma compreensão mais completa do plano de Deus. A conversão dos gentios não era uma "variante menor" da salvação, mas a plena inclusão deles no novo pacto em Cristo.

Teologicamente, essa inclusão era uma demonstração clara da transição de um pacto centrado na etnia (Israel) para um pacto baseado na fé em Jesus Cristo. A carta aos Efésios, escrita pouco tempo depois dessa viagem, reflete exatamente essa realidade, ao afirmar que "em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo" (Efésios 2:13). A nova humanidade, formada em Cristo, não mais fazia distinção entre judeus e gentios. Esse tema é ampliado por N.T. Wright em Paul: A Biography, onde ele argumenta que Paulo via a inclusão dos gentios como a culminação da história de Israel, o que ele chamou de "o mistério de Cristo" (Efésios 3:4-6).

Autores como F.F. Bruce, em Paulo: O Apóstolo do Coração Livre, defendem que a visão paulina de uma igreja universal, inclusiva de todas as nações, foi a chave para a expansão explosiva do cristianismo nos primeiros séculos. Bruce sugere que, sem essa visão missionária e inclusiva, o cristianismo teria permanecido uma seita minoritária dentro do judaísmo, em vez de se tornar a fé global que conhecemos hoje. A ousadia de Paulo em romper as barreiras culturais e religiosas foi fundamental para que o evangelho alcançasse todos os povos.

Os Conflitos Espirituais em Éfeso

A cidade de Éfeso, onde Paulo permaneceu por três anos, era um centro religioso e comercial, sendo também um dos principais locais de adoração à deusa Ártemis. Essa atmosfera profundamente religiosa e espiritualizada, com forte influência pagã e práticas de magia, fez com que Paulo enfrentasse não apenas desafios culturais, mas espirituais. Um dos episódios mais marcantes foi o confronto com os exorcistas judeus que tentavam usar o nome de Jesus sem terem conhecimento real do poder do evangelho (Atos 19:13-17). Esse episódio culminou em um poderoso testemunho público da superioridade do poder de Cristo sobre qualquer forma de espiritualidade pagã.

A queima dos livros de magia, realizada pelos convertidos em Éfeso (Atos 19:19), é um marco teológico significativo, pois revela a renúncia pública e radical das antigas práticas espirituais em favor da fé em Cristo. Esses eventos sublinham a realidade de que o cristianismo, desde o início, foi um confronto direto com poderes espirituais malignos. A batalha espiritual travada ali não era meramente simbólica, mas envolvia a destruição de práticas reais que mantinham pessoas cativas. Paulo, ao pregar e demonstrar o poder de Cristo, não estava apenas oferecendo uma nova filosofia, mas libertando pessoas de influências espirituais destrutivas.

Autores como Gordon Fee, em God’s Empowering Presence, observam que Paulo tinha uma visão muito clara do conflito espiritual no mundo. Para ele, o evangelho não era apenas uma mensagem de transformação pessoal, mas de uma guerra cósmica entre as forças de Deus e as do mal. Esse entendimento do evangelho como poder que liberta se reflete também nos escritos de Walter Wink, em Powers That Be, onde ele argumenta que Paulo via o cristianismo como uma força de resistência espiritual, enfrentando diretamente os "poderes e autoridades" que dominavam o mundo.

Por fim, a permanência de Paulo em Éfeso e os conflitos ali enfrentados ressaltam que o evangelho não pode ser diluído em mero ensinamento moral. Ele envolve poder, confronto espiritual e transformação radical. A renúncia dos efésios às suas práticas de magia é a prova concreta de que o cristianismo exige não apenas mudança de crença, mas de estilo de vida e compromisso espiritual.

                A análise das viagens missionárias de Paulo, especialmente a terceira, nos desafia a olhar o livro de Atos com um olhar mais atento e crítico. O autor, Lucas, com seu cuidado detalhista, não apenas relata eventos, mas nos convida a enxergar os desdobramentos teológicos por trás das ações do apóstolo. Cada detalhe, cada episódio registrado, carrega em si um propósito teológico profundo. Assim, ao nos debruçarmos sobre o texto de Atos, somos encorajados a captar esses detalhes intencionais e a nos inspirar com a mensagem de uma igreja que, desde o início, enfrentou desafios externos e internos com uma visão espiritual clara e uma teologia robusta. Que essa leitura inspire um maior compromisso com o evangelho e uma busca contínua por profundidade espiritual.

sábado, 7 de setembro de 2024

Mudanças narrativas em Atos - Por que?

Por Jânsen Leiros

A narrativa no livro de Atos dos Apóstolos marca uma transição notável e estratégica a partir da conversão de Saulo de Tarso, que se torna o apóstolo Paulo. Essa mudança, que desloca o protagonismo da igreja de Jerusalém para as viagens missionárias do agora convertido Paulo, não se trata apenas de uma escolha literária do autor, Lucas. Muito mais do que isso, reflete um movimento divino intencional. A centralização da narrativa em Paulo e sua missão não apenas impulsiona a expansão geográfica do evangelho aos gentios, mas também serve como resposta à ameaça interna que rondava a igreja primitiva: o movimento judaizante. Este movimento buscava impor práticas legais judaicas, como a circuncisão, à fé cristã, o que poderia restringir o evangelho a uma seita judaica, sufocando sua universalidade.

Paulo emerge como o apóstolo da graça, um defensor fervoroso de que a salvação não vem pela observância da Lei mosaica, mas pela fé em Jesus Cristo. Essa transição narrativa de Pedro e dos demais apóstolos para a figura de Paulo não é um simples deslocamento de foco geográfico ou ministerial. Teologicamente, reflete uma ruptura fundamental com o judaísmo legalista e uma reafirmação da natureza inclusiva e universal do evangelho. A centralidade de Paulo em Atos tem como pano de fundo uma batalha teológica pela identidade do cristianismo: seria ele uma continuação do judaísmo, vinculado à Lei e suas práticas, ou seria uma nova aliança, marcada pela fé e graça, aberta a todos os povos?

O movimento judaizante, que ganha relevância em várias partes do Novo Testamento, é uma força significativa dentro da igreja primitiva. Sua influência é particularmente notada em Gálatas, onde Paulo confronta diretamente aqueles que tentavam impor a circuncisão e outras práticas da Lei aos gentios convertidos. O conflito é explícito: se a observância da Lei de Moisés fosse requerida para a salvação, a fé em Cristo seria diminuída, e o cristianismo se tornaria uma subcategoria do judaísmo. A centralidade de Paulo na segunda metade de Atos, aliada às suas epístolas, revela a luta teológica para garantir que o cristianismo emergisse como uma fé fundamentada na graça divina, e não nas obras da Lei. A sua teologia, exposta em cartas como Romanos e Gálatas, foi decisiva para libertar a mensagem cristã das amarras legalistas que ameaçavam a jovem igreja.

1. O Conflito com o Judaísmo e o Movimento Judaizante

Desde o início da missão cristã, havia tensões entre os que viam a fé em Cristo como um movimento inclusivo, destinado a todos os povos, e aqueles que acreditavam que o cristianismo deveria seguir fielmente as tradições judaicas. A circuncisão, símbolo central da aliança de Deus com Israel, tornou-se o ponto de discórdia entre esses dois grupos. Em Atos 15, encontramos o Concílio de Jerusalém, um momento decisivo em que a liderança da igreja primitiva, incluindo Pedro, Tiago e Paulo, debatem abertamente se os gentios convertidos deveriam ou não ser obrigados a observar a Lei de Moisés.

O resultado do concílio foi um marco de ruptura: a decisão de que os gentios não precisariam seguir a Lei para serem salvos, exceto por algumas poucas instruções com o objetivo de promover a convivência pacífica entre judeus e gentios (Atos 15:28-29). Esta decisão não foi apenas uma questão de conveniência pastoral; ela tinha implicações teológicas profundas. A igreja estava, naquele momento, traçando uma linha clara entre o que era essencial para a fé cristã — a graça e a fé em Jesus Cristo — e o que pertencia ao antigo pacto, agora superado. Esse evento esvazia, de forma definitiva, a tentativa de "judaizar" o cristianismo, e a missão de Paulo passa a ser vista como a encarnação dessa nova fase do evangelho.

2. A Teologia da Graça e a Inclusão Gentílica

A teologia de Paulo, como articulada principalmente em Romanos e Gálatas, enfatiza que a justificação vem pela fé em Cristo, e não pela observância da Lei. Em Romanos 3:28, ele afirma: "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei". Essa doutrina é o cerne da missão de Paulo aos gentios e reflete uma compreensão revolucionária da relação entre a antiga e a nova aliança. A Lei, para Paulo, serviu como um tutor (paidagogos), um guia temporário até a chegada de Cristo (Gálatas 3:24-25). Com a vinda de Cristo, a função da Lei foi cumprida e superada pela fé.

Essa teologia da graça não era apenas uma ideia teórica; ela tinha implicações práticas significativas para a missão gentílica. Ao retirar a exigência da observância da Lei mosaica, o evangelho tornava-se acessível a todas as culturas e povos, sem a necessidade de uma conversão prévia ao judaísmo. Isso marca uma ruptura com o exclusivismo judaico e reflete a universalidade da mensagem cristã. O livro de Atos, ao centrar-se em Paulo e suas viagens, reforça essa teologia, mostrando que o evangelho transcende as barreiras étnicas e culturais. Paulo, em suas cartas, argumenta repetidamente que a salvação é uma dádiva divina, não uma recompensa por cumprir a Lei, e esse princípio está presente em toda sua missão.

3. Romanos 11: A Inclusão dos Judeus e Gentios no Plano de Deus

Um aspecto frequentemente negligenciado ao discutir a teologia de Paulo e a missão gentílica é sua visão sobre a inclusão dos judeus no plano de Deus, apresentada de forma detalhada em Romanos 11. Paulo não apenas combate o legalismo judaizante, mas também deixa claro que os judeus não estão fora do alcance da graça de Deus. Ele utiliza a metáfora da oliveira, onde os gentios são enxertados na raiz de Israel, mas adverte que os judeus podem ser novamente enxertados pela fé.

Essa passagem é crucial para entender que, ao mesmo tempo em que Paulo combate a imposição da Lei, ele não descarta a importância do povo judeu no plano de salvação. Para ele, o evangelho é uma mensagem de inclusão, tanto para judeus quanto para gentios, e a única condição é a fé em Jesus Cristo. Em Romanos 11:26, ele profetiza: "E assim todo o Israel será salvo". Isso reafirma que, mesmo com sua missão voltada principalmente aos gentios, Paulo não vê os judeus como excluídos da promessa divina. O evangelho, para ele, é inclusivo em todos os sentidos — seja para aqueles que viviam sob a Lei, seja para aqueles que nunca a conheceram.

4. O Concílio de Jerusalém como Ponto de Ruptura

O Concílio de Jerusalém, descrito em Atos 15, é um evento decisivo para entender a natureza do cristianismo nascente. Ao determinar que os gentios convertidos não precisavam seguir a Lei de Moisés, os líderes da igreja estabeleceram uma nova identidade para a fé cristã, que se distanciava das obrigações legais judaicas. Paulo e Barnabé, que haviam levado essa questão ao concílio, saem vitoriosos, pois a igreja decide pela liberdade dos gentios em relação à Lei. Contudo, o concílio não apenas favorece a expansão missionária; ele também reafirma que a salvação é um ato de graça, acessível a todos através de Jesus Cristo.

Essa ruptura com o judaísmo legalista é um marco teológico fundamental, e Paulo emerge como a figura central nessa batalha pela identidade da igreja. Atos, ao centrar-se em Paulo após o concílio, não só documenta a expansão do evangelho, mas também reforça a teologia da graça como o coração da fé cristã.

5. A Missão de Paulo como Libertação Teológica

A missão de Paulo não foi apenas geográfica; ela também foi profundamente teológica. Ao confrontar o movimento judaizante, Paulo libertou o cristianismo de se tornar uma seita judaica, resgatando a universalidade do evangelho. Sua insistência na salvação pela fé e não pelas obras da Lei é uma das razões pelas quais o cristianismo se espalhou além dos limites do judaísmo. Gálatas 5:1 é uma declaração clara desse compromisso: "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permaneçam, pois, firmes e não se submetam novamente a um jugo de escravidão".

A teologia da graça é central não apenas para o cristianismo paulino, mas para a igreja universal. Ao destacar a figura de Paulo, Atos não apenas narra o crescimento da igreja, mas também reflete a importância de sua mensagem teológica: a liberdade em Cristo, desvinculada da necessidade de observância legal. A conversão de Saulo e sua subsequente missão são, portanto, não apenas um momento de mudança narrativa, mas também de libertação teológica que moldou o futuro da igreja cristã.


terça-feira, 10 de maio de 2022

Religiões - Caminhos e Descaminhos

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 Caminhos

 Depois da pergunta por Deus, a questão sobre o que é a religião talvez seja a mais necessária investigação no caminho de encontrarmos o sentido da vida. Não que a religião seja esse sentido. Não mesmo. Porém, no processo de desvendarmos as motivações que levam o ser humano a exercitar-se na religião, inevitavelmente passamos tanto pelo terreno do significado da vida, quanto pelos mais instintivos impulsos da alma.

 A pergunta pelo que é religião, no entanto, não é facilmente respondida quando se pretende, por princípio, usarmos de honestidade e sobretudo responsabilidade. Muito pelo contrário. No caminho de desvendarmos todas as possibilidades, acabamos por transitar por becos escuros, ruas sem saídas e por labirintos difíceis de serem compreendidos. E por que isso? Porque as encruzilhadas são muitas, e nesta jornada o que difere verdade de equívoco é muito tênue. Isso se dá por diversos fatores que influenciam essa busca, indo desde cenários históricos em que se ambientam as pesquisas, até a própria experimentação religiosa, ou não, do pesquisador.

 Não é sem razão que, segundo Irênio Silveira Chaves em seu livro O que é Religião, ele se surpreende ao iniciar seu trabalho de pesquisa sobre o tema. O curioso na pesquisa que fiz foi descobrir que a grande maioria dos teólogos sistemáticos tradicionais nunca discutiu a respeito do fenômeno religioso em si, e poucos foram os que trataram o cristianismo como uma religião.

 Ou seja, um estudo honesto e responsável do que é a religião demanda coragem, ousadia e desprendimento. Coragem para seguir na tarefa, ainda que possíveis conclusões ameacem confrontar as próprias crenças. Ousadia para não recuar diante das ameaças veladas das conveniências. E por fim desprendimento, para saber renunciar a antigos trapos de convicções que se rasgarem mediante a verdade.

  Assim, será preciso despir-se de todas as lentes que temos diante dos olhos, tanto as atuais, quanto aquelas que já usamos um dia, que de um jeito ou de outro, ainda influenciam nossas percepções. E acreditem, essa não é uma tarefa simples, já que quase nunca nos percebemos olhando através dessa ou daquela lente, ou espelho. São muitos os fatores que nos influenciam o pensamento e as conclusões, podem apostar.

 Por essa razão, peço, sejam generosos e pacientes comigo. E se, porventura, não trouxer nada novo ou relevante a vocês, tomara consiga, provocar a vontade de refletir sobre o tema, para que busquem o conhecimento, e encontrem a liberdade.

 Espontaneidade legítima

 A maneira mais simples e pragmática de abordar o tema, é atribuir à religião um aspecto de instituição pensada para um determinado fim. Como se alguém ou grupo de pessoas, em um indefinido instante da história humana, instituísse a religião como um conjunto de ideias, rituais, e narrativas a respeito do sagrado, que não apenas apaziguasse a inquietude humana nessa busca, mas também a percebesse como um oportuno meio de manipulação dos adeptos.

 Não que a religião como a conhecemos não seja isso, ou não se preste a isso. Temos a noção exata que instituições religiosas mundo afora manipulam pessoas, e direcionam seus destinos conforme as pretensões e conveniências de seus líderes; quase sempre personagens muito eloquentes e convincentes. O despertar para um ato religioso, porém, é necessariamente anterior ao uso que já se fez ou se faz da religião. Esse despertamento é um ato espontâneo e totalmente livre, na direção daquilo que se entende inexoravelmente externo e superior a si mesmo. Podemos entender esse despertamento ou ato religioso primordial, como fruto de um espanto diante do confronto com uma realidade irrefutável, como faz o salmista em os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos. O que é essa frase, senão uma afirmação nascida do espanto mediante uma realidade que grita diante de seus olhos perplexos?

 A verdade é que a religião está mais próxima de nossa experiência pessoal do que desejamos admitir. É mais do que uma representação de nossa visão de mundo. É também, e principalmente, o reflexo do que somos essencialmente, e por isso é quase indissociável à nossa existência, participando ativa ou passivamente de quase todos os empreendimentos humanos. Em sua expressão mais espontânea e sincera, a elaboração religiosa é o exercício de transcender a si mesmo para além da própria consciência, quer individual ou coletiva. É a tentativa de encontrar em um totalmente outro, respostas às inquietantes indagações da alma.

 Talvez por isso haja quem afirme que não há povo sem religião, por mais primitivo ou avançado que seja. Em todas as civilizações, em todo o tempo e em todo lugar, a religião sempre esteve presente, expressando em menor ou maior grau, aquilo que uma ou mais pessoas entendiam ou nominavam como manifestação do sagrado.

 Mas afinal, o que provoca o impulso para o que convencionamos chamar de ato religioso primordial? O que faz o ser humano sentir necessidade de sair de si mesmo, para buscar fora as razões existenciais, a causa e o sentido de tudo o mais em seu mundo conhecido?